sexta-feira, 3 de junho de 2016

SER DIFERENTE É NORMAL



            A gente percebe que a pátria educadora ainda está muito longe da realidade pretendida para ela quando se depara com inúmeras situações de flagrante desrespeito e preconceito nos corredores das universidades.

Sou aluna da Universidade Regional do Cariri há quase 06 anos, período este que usei para me graduar e dar início a um curso de Especialização. E durante este interstício, eu e a minha mãe (que também é estudante da URCA) já experimentamos algumas situações constrangedoras que se deram em ocasiões em que tivemos de circular pelos corredores da Urquinha (como eu carinhosamente gosto de chamá-la) na companhia do meu filho, um rapazinho que hoje conta com 06 (seis) anos de idade e sofre do Transtorno do Espectro Autista (um transtorno do desenvolvimento global que afeta milhões de brasileiros em todos os rincões e classes sociais desse país).

No início da noite de hoje estava nas dependências da universidade e quando me preparava para deixá-la resolvi comprar um lanche para o meu filho numa lanchonete localizada dentro do Campus do Pimenta, como forma de recompensá-lo pelo comportamento (que para os seus padrões havia sido muito bom) e de mantê-lo calmo no trajeto para casa (é que um dos seus muitos comportamentos compulsivos está ligado à comida). Nesse ínterim tive dificuldade em explicar-lhe que eu não poderia comprar todos os petiscos que ele gostaria (que por ele seriam todos!).

Acontece que uma das muitas limitações impostas ao meu filho, que sofre de autismo clássico (severo), foi a do não desenvolvimento da fala. De modo que ele não consegue expressar-se verbalmente e, tampouco, compreende quando nós (minha família – seus cuidadores) tentamos explicar-lhe que nem tudo que ele deseja pode ser feito e que muitos dos seus comportamentos são socialmente inaceitáveis. A maior parte das vezes ele simplesmente não compreende o que tentamos transmitir-lhe através da fala.

Na ocasião em comento meu filho lançou-se ao chão e eu optei por esperar que ele se acalmasse um pouco antes de tocar-lhe, ele poderia estar sofrendo um episódio de overdose sensorial, fruto da desorganização sensorial que afeta os indivíduos autistas e além da frustração acarretada pelo “não!” que ele acabara de ouvir da mamãe, ele poderia estar se sentindo mal (sentindo, inclusive, dor física) pelo excesso de estímulos fornecido pelo local em que se encontrava. Eu sabia que se o pegasse no colo imediatamente ele iria gritar (muito e muito alto!). Não queria estressá-lo ainda mais, nem incomodar os debates e as conversas (que eu julgava que fossem edificantes) dos acadêmicos que lá se encontravam. O irônico é que as conversas que eu não queria atrapalhar podiam ser justamente a fonte do barulho que o atormentava. Esperei alguns segundos, enquanto ele pressionava suas mãos contra suas duas orelhinhas, o peguei pela mãozinha e estávamos indo embora quando ouvi um disparate.

Uma das mesas da referida lanchonete estava repleta de alunos do curso de Ciências Biológicas. E uma aluna dirigiu-me, indiretamente, os seguintes dizeres enquanto eu passava: Isso é falta de educação doméstica. A mãe, que não tem educação, não sabe educar o filho. Ao que o colega da indigitada acadêmica responde: Se fosse meu filho dava-lhe umas tapas pra aprender a se comportar.

Como mãe, sei que as pessoas que questionam uma possível omissão na educação dos rebentos alheios são as mesmas que não empregam nenhuma porção de ATP (adenosina trifostato – energia celular – vamos falar a língua dos colegas), por mais ínfima que seja, na tarefa que é só sua e cujo desempenho, curiosamente, se acham no direito de julgar. E compreendo que só descobre a complexidade do desafio que é verdadeiramente educar alguém, quem se dispõe a experimentar o sabor da maternidade ou paternidade. Sei também que o processo dialético que proporciona infinitos aprendizados decorrentes do exercício dessa missão divina (a do ser mãe e/ou pai) só se aperfeiçoa quando o indivíduo se propõe a viver a maternidade ou paternidade na concepção moderna dos termos, sendo emocionalmente presente. De modo que, o que se há de discutir com alguém que sequer experimentou as delícias e agruras deste ofício?

É bem verdade que essa não foi a primeira e sei que infelizmente não será a última vez que passarei por situações semelhantes. Ocorre que em todas as tantas outras vezes escolhi me calar. Mas como nem só de atos comissivos vive o pecado, resolvi não me arriscar a pecar por omissão. Mesmo porque é extremamente alarmante que situações como a que relato se dêem dentro de um “templo do saber”, local que as pessoas supostamente procuram a fim de se libertar da ignorância e do preconceito. Me deixa profundamente irrequieta ouvir comentários assim nos mesmos corredores em que indivíduos como os que agrediram a mim, enquanto mulher/mãe, e ao meu filho, enquanto ser humano/deficiente, bradam seus discursos hipócritas sobre igualdade (inclusive no trato para com pessoas deficientes) e empoderamento feminino (que não converge de modo algum com ataques decorrentes de comentários capciosos e depreciativos a uma mulher enquanto indivíduo e mãe).

Mas a falta de educação doméstica (que na verdade foi SUA, colega “da Biologia”) que implicou na agressão desferida contra nós não é algo inerente ao curso frequentado pelos nossos ofensores de hoje. Já vivi uma situação semelhante em que o envolvido era um aluno do curso de Enfermagem (um futuro profissional da área da saúde! Pasmem!) e no próprio curso que frequentei nessa instituição de ensino que eu tanto amo (o curso de Direito). Nas bandas do Campus São Miguel todo mundo sabe invocar prontamente o princípio da dignidade da pessoa humana, mas nem todos são capazes de compreender a carga axiológica do referido princípio, tampouco se preocupam em assegurar-lhe eficácia nas incontáveis oportunidades que todos os dias a própria vivência em sociedade lhes proporciona. Quantos olhares de reprovação não me fuzilaram ao longo dos anos pela “falta de educação doméstica” do pequeno exemplar de autista que vive aqui em casa! Situações assim são corriqueiras na vida de quem convive com o autismo, elas se dão nas filas dos bancos, nos supermercados, parquinhos, praças. E entre os agressores estão todos os mais variados tipos de personagens. Por vezes até pessoas muito instruídas e do nosso convívio pessoal nos machucam com “pérolas” como esta. Mas a enorme frequência com que elas ocorrem não faz com que elas se tornem mais aceitáveis.

Como a condição dos autistas não está evidenciada nos traços da sua face, ao reverso do que ocorre, por exemplo, com os portadores da Síndrome de Down, ou pessoas que sofrem de paralisia cerebral, os ataques que se concretizam por meio de olhares cortantes de reprovação e comentários desencorajadores dirigidos a esses indivíduos e seus familiares são absurda e revoltantemente recorrentes. Mas é aí que entra aquela máxima: Se não quer ajudar, não atrapalhe. E se quiser pôr a gentileza em prática, mas não sabe como, pergunte como pode fazê-lo.

Sei que a agressão que eu e meu filho sofremos é fruto da falta de informação, mas ela reside também na falta de educação doméstica (o mesmo atributo que a colega me acusou de não possuir) e por conseguinte, do despreparo para viver em sociedade. Longe de mim pretender educar o mundo ou mesmo instruí-lo, posto que sou detentora de poucos saberes. Mas não custa lembrar que as estatísticas de países como os Estados Unidos, que já encaram o autismo como uma questão de saúde pública e desenvolvem protocolos de tratamento muito mais modernos que os dos quais dispomos por cá, indicam que 1 em cada 68 crianças nascidas tem autismo. Nas bandas da nossa pátria educadora, salvo engano, esse número é de 1 criança em cada 88. São milhões de pessoas vivendo limitações semelhantes, sendo elas maiores ou menores que as do meu filho. E isso quer dizer que os colegas que nos agrediram possuem grandes chances de esbarrar por aí com muitas pessoas que se encontram na mesma condição que o meu Lucas.
Assim, seguem os seguintes conselhos: Esqueça o que a novela da Rede Globo te “ensinou” sobre autismo, desligue um pouco a televisão, vá ler um livro e, sobretudo, fomente o empoderamento feminino exercitando a infinita educação doméstica da qual você se gaba respeitando sua semelhante de gênero e mate a sua mãe de orgulho (exercitando aquele monte de educação que a sua fala me leva a crer que ela te deu!) escolhendo calar quando surgir novamente a oportunidade de criticar a “criancinha birrenta” ao seu lado (ela pode ser autista e “a pessoa com transtorno do espectro autista é considerada pessoa com deficiência, para todos os efeitos legais.”). Vocês, colegas estudantes que nos agrediram, gastem mais tempo estudando sobre as mitocôndrias que vocês herdaram das suas respectivas mães, em vez de empregá-lo no cálculo de sucesso alcançado pelas mães dos outros no exercício da maternidade. E no mais, ficam aqui os avisos aos navegantes deste mundo ainda tão cruel: espaços públicos podem e devem ser frequentados por todos e em eventos futuros as providências cabíveis poderão ser tomadas dentro e fora do âmbito da Universidade. Mas vamos também buscar inspiração nesse arco-íris lindo que estampava o céu hoje a tarde (curiosamente, minutos antes do acontecimento aqui relatado...) e vamos buscar a reconciliação com as diferenças. Ser diferente é normal.

Mariana Pérez
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